O impacto da Covid-19 no mercado do Seguro Garantia para o futuro
Quando se
aproxima do fim de um ano, há sempre uma grande expectativa de que o próximo
será melhor. O ano de 2019 não foi diferente, tendo sido encerrado com grande
expectativa de que, em 2020, o Brasil sofreria uma alavancagem econômica. O que
não se sabia é que no continente asiático nascia um vírus não só fatal aos
seres humanos, mas que também devastaria a economia global e causaria impactos
socioeconômicos jamais vistos.
No fim do primeiro trimestre, apesar de aparentar ter diminuído a incidência na China, país que foi o palco do epicentro inicial, a propagação da doença se acelerou em outros lugares, tendo a Europa e os Estados Unidos apresentado o maior número de casos. Os governos reagiram das mais diversas e dramáticas maneiras, fechando fronteiras, impondo bloqueios a viagens internacionais e domésticas, proibindo o funcionamento de escolas, shoppings centers e realização de reuniões e eventos em massa, bem como promovendo o cancelamento de grandes eventos do entreterimento e esportivos, como, por exemplo, as Olimpíadas de Tóquio.
No Brasil, apesar das medidas de isolamento terem sido
adotadas, ele é apontado como novo epicentro, enquanto a situação aparenta estar
mais controlada ao redor do mundo.
Ainda que os
números nos demais países tenham decrescido, ainda paira um grande receio de
uma segunda onda de casos tão devastadora ou até mesmo mais agressiva do que a
que estamos vivendo hoje.
Uma crise
econômica como a causada pela Covid-19 traz enfoque às companhias seguradoras
mundo afora que podem receber tsunamis de expectativas de sinistros e
avisos de sinistros relativos aos mais diversos ramos de seguros.
Não sabemos
como a crise caminhará a partir daqui, mas, no momento, é de suma importância
compreendermos quais são as implicações nos setores econômicos e como o setor
de seguros se adaptará ao desdobramento desse colapso econômico, já que a
previsão de recessão global não é otimista. O Fundo Monetário Internacional –
FMI prevê que o desenvolvimento da economia global deve cair 9,4% em 2020,
sendo que no Brasil o tombo no PIB poderá atingir 9,1%[1].
É claro que o ônus suportado pelo mercado securitário dependerá muito da
gravidade da pandemia, até quando ela perdurará e a extensão em que medidas de
contenção de contaminação afetarão os diferentes setores e tipos de negócios.
Como estamos
diante de uma crise acarretada por uma doença que atingiu a população a nível
global, vem à cabeça que os ramos de seguros mais afetados são os diretamente
relacionados à doença em si, ou seja, os seguros de pessoas, como o de saúde,
de vida e o de viagem.
No entanto,
como as operações, investimentos e obrigações contratuais para empresas em todo
o mundo foram ralentados e até mesmo paralisados, sendo que o futuro dos
negócios permanece incerto, há outro ramo potencialmente afetado e que merece
nossa atenção. O Seguro Garantia.
Dado o
transcurso dos seis meses desde a declaração de pandemia pela OMS, alguns dos
efeitos da Covid-19 já estão um pouco mais transparentes, porém nada é tomado
como absoluto. Certo é que a pandemia criou inúmeros fatores negativos aos mais
diversos setores econômicos, desde a volatilidade significativa no mercado de
ações e algumas quedas abruptas, instabilidade nas taxas de juros e impactos
drásticos nos níveis de consumo.
Todos esses
fatores podem resultar em desafios de índice de solvência das empresas, o que
afeta diretamente o cumprimento de obrigações contratuais das mais diversas
modalidades, das quais o respectivo cumprimento pode estar assegurado pelo
Seguro Garantia, que tem por princípio basilar garantir o contratante, na
qualidade de segurado, em caso de inadimplemento contratual perpetrado pelo
contratado, na qualidade de tomador.
Alguns países
adotaram medidas protetivas ao empresariado. O Governo francês, por exemplo,
devido à pandemia da Covid-19, por meio do Despacho nº 2020-306 de 25 de março
de 2020, suspendeu certas penalidades e mecanismos de violação de contrato e
extensão dos prazos relativos à rescisão e renovação, de modo que a parte
afetada não será capaz para reclamar o pagamento de sanções ou para se beneficiar
de cláusulas penais, cláusulas de resolução e cláusulas de aceleração
destinadas a sancionar tal violação.
O Governo de
Singapura criou o “The Covid-19 (Temporary Measures) Act”, que
proporciona alívio temporário às pessoas jurídicas e físicas que não conseguem
cumprir suas obrigações contratuais devido aos efeitos da pandemia. As medidas
abrangem as obrigações contratuais que devem ser cumpridas em ou após 1 de
fevereiro de 2020, e para contratos programados que foram celebrados ou
renovados antes de 25 de março de 2020.
No Brasil,
seguindo a mesma corrente, foi apresentado ao Plenário do Senado o Projeto de
Lei n° 1.179/2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório
das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia da Covid-19.
O objetivo
basilar desse Projeto de Lei Emergencial era minimizar os impactos sociais e
econômicos no país ao implementar regras legais transitórias que suspenderiam
temporariamente a aplicação de determinados dispositivos legais relativos à
regulamentação de matérias de Direito Privado.
Dentre os
principais pontos do Projeto de Lei, se destaca a disposição trazida pelo seu
artigo 6º, que objetivava determinar que os efeitos da pandemia, tendo como
marco inicial decretado como 20 de março de 2020, equivalem às hipóteses de
caso fortuito e força maior trazidas pelo Código Civil, com exceção das
obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia.
Em junho de
2020, o Presidente da República vetou inúmeros dispositivos do Projeto de Lei,
incluindo seu artigo 6º, tendo, naquele mesmo mês, sido publicada a Lei n°
14.010/2020. Ocorre que em agosto de 2020, em sessão do Congresso Nacional[2],
os parlamentares confirmaram a derrubada de veto para reincluir na Lei n°
14.010/2020 a proposição originária de diversos institutos do Projeto de Lei n°
1.179/2020, incluindo o seu artigo 6º, que objetivava tratar os efeitos da
pandemia equivalentes às hipóteses de caso fortuito e força maior trazidas pelo
Código Civil.
Ainda que tenha
havido discussão sobre a manutenção do artigo 6º no texto da Lei n°
14.010/2020, o seu teor já é tratado no Código Civil, tendo sido esse,
inclusive, o motivo do referido artigo ter sido vetado inicialmente. De acordo
com o Presidente da República em sua manifestação se veto, "a propositura
legislativa, contraria o interesse público, uma vez que o ordenamento
jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das
obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da
força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade
excessiva." (grifo nosso)
Neste sentido,
levando em consideração a decretação de estado de calamidade pelo Congresso
Nacional em 20/03/2020[3],
a pandemia causada pela Covid-19 pode caracterizar-se como evento de caso
fortuito ou força maior, o que legitimaria o descumprimento de obrigações
contratuais, conforme reza o artigo 393 do Código Civil.
Ressalta-se que
a Circular SUSEP nº 477, de 30 de setembro de 2013, traz em seus termos e
condições padronizados do Seguro Garantia públicos e privados a disposição
expressa para a perda de direitos do segurado resultantes de caso fortuito ou
força maior, o que, via de regra, enseja negativa de indenização securitária
por parte da seguradora em casos de inadimplemento decorrentes daqueles
institutos.
No que concerne
a essa hipótese de perda de direitos, importante pontuar que a decretação do
estado de calamidade não é por si só elemento único capaz de ensejar a
configuração de caso fortuito e da força maior nas relações contratuais
garantidas pelo Seguro Garantia.
Para tanto, é imprescindível que o devedor, no caso o contratado, demonstre que os efeitos decorrentes da pandemia não podiam ser evitados ou até mesmo impedidos. Ou seja, faz-se necessária a realização de uma análise minuciosa do caso concreto objetivando verificar se os efeitos negativos não poderiam ser razoavelmente evitados por uma das partes daquela determinada relação contratual.
Ainda no que
concerne ao Seguro Garantia, é importante que tanto as partes quanto a
seguradora garantidora do interesse segurado revisitem o contrato objeto do
seguro no intuito de verificar a existência de previsão de suspensão contratual
em hipóteses de inadimplemento ocasionado por caso fortuito ou força maior, bem
como para verificar se aquele determinado instrumento contratual elenca ou
exclui taxativamente a pandemia como uma hipótese de caso fortuito ou força
maior em casos de inadimplemento contratual.
No mais, é
imprescindível verificar se a causa que ensejou o inadimplemento contratual de
fato decorre do atual cenário ocasionado pela pandemia ou se, na verdade, tem
como causa fatos e elementos não relacionados à Covid-19 e à decretação de estado
de calamidade. Em que pese a Covid-19 ser um fato extraordinário e imprevisível
com consequências sem precedentes não significa que sua ocorrência foi o fator
exclusivo e determinante para a configuração do inadimplemento por parte do
tomador, de modo que caberá à seguradora verificar se a pandemia contribuiu
para a sua ocorrência e, em caso positivo, mensurar a proporção que os efeitos
desencadeados pela Covid-19 influenciaram na inexecução de determinada
obrigação contratual.
Ainda, não se
pode afastar uma eventual contribuição do segurado na ocorrência do
inadimplemento contratual, mesmo que essa parcela também decorra dos efeitos
trazidos pela pandemia, tais como atraso ou retenção de pagamento ou suspensão
de adiantamento de pagamentos em decorrência de desestabilização nos
recebimentos e no fluxo de caixa, ausência de aprovação de projetos, etc.
Em alguns contratos,
há a previsão de prazo para que a parte inadimplente comunique sobre a
ocorrência de caso fortuito ou força maior que impacte na execução do objeto
contratual. Desta forma, abre-se uma brecha para que as partes travem
negociações positivas à execução contratual e celebrem aditivos com o intuito
de sanarem questões relativas ao adimplemento, como, por exemplo, repactuação
do cronograma, reequilíbrio econômico financeiro do contrato e até mesmo
extinção de aplicação de multa contratual.
Assim, a
seguradora, na qualidade de parte interessada na realização do objeto do
contrato, poderá exercer um papel mediador na relação contratual existente
entre o contratante e o contratado, que é essencial para minimizar os impactos
causados pela Covid-19 e, consequentemente, evitar a concretização de sinistro
e eventual judicialização da questão.
Dito isso,
evidente que estes são tempos difíceis. Ainda que todos os desafios enfrentados
em 2020 sejam superados, a dúvida que fica é: quais são as tendências de médio
e longo prazo que a Covid-19 pode servir para inaugurar o futuro?
Uma das
tendências será maior liberdade de negociação na contratação do seguro garantia
relacionado a obras de infraestrutura. De acordo com o novo Marco Regulatório
proposto pela atual gestão da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, os
contratos de seguro de danos para cobertura de grandes riscos serão regidos por
condições contratuais livremente pactuadas com a seguradora, devendo observar,
no mínimo, os seguintes princípios e valores básicos: I - liberdade negocial
ampla; II – boa-fé; III - clareza e objetividade nas informações; IV - – tratamento
paritário entre as partes contratantes; V – estímulo às soluções alternativas
de controvérsias; VI - intervenção estatal subsidiária e excepcional na
formatação dos produtos; e VII - livre pactuação dos negócios jurídicos. Desse
modo, as partes poderão negociar inclusive os efeitos de uma pandemia na
cobertura securitária.
Nesse sentido,
a SUSEP muito em breve realizará consulta pública sobre novo normativo que
altera as disposições da mencionada Circular SUSEP nº 477.