Seguro D&O: O Mercado indeniza ou não sinistros?
Destaque entre os seguros do grupo denominado
“responsabilidades”, o Seguro de Responsabilidade Civil de Administradores,
usualmente conhecido como D&O (Directors and Officers Insurance),
revela-se como importante meio de preservação do patrimônio de administradores
e sociedades empresariais frente à ocorrência de litígios administrativos e
judiciais nos quais discutam-se a prática de irregularidades em atos de gestão.
Neste sentido, uma das facetas da preservação
patrimonial supramencionada ocorre mediante a transferência, à seguradora, da
responsabilidade pelo adimplemento de valores incorridos por
administradores/diretores ou pela sociedade tomadora com custos suportados com
a defesa de seus interesses em procedimentos litigiosos e investigativos.
Portanto, o que ocorre com a celebração do
seguro é que as consequências patrimoniais da referida responsabilidade são
assumidas total ou parcialmente por um sujeito distinto de quem é declarado
como o responsável[1].
Frente à tal escopo, o seguro D&O, criado
pelo grupo Lloyds Underwritters em decorrência da crise econômica de
1929 e posterior promulgação nos Estados Unidos da América do Securities Act
(1933) e o Exchange Securities Act (1934), foi introduzido no mercado
brasileiro no final da década de 90, apresentando sólida evolução, tanto comercial
quanto em sua aplicabilidade prática no decurso dos últimos anos.
No entanto, em momento anterior à eclosão da
pandemia da Covid-19, imotivado entendimento sobre pretensa ausência de
pagamento de indenizações securitárias e formação de corrente jurisprudencial
defensora da inutilização das coberturas contidas do seguro D&O reverberava
em setores do mercado segurador, incorreções estas que serão demonstradas no
presente artigo.
Em compasso com os dados anuais divulgados
pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, observa-se que no ano de
2019 houve captação de prêmio emitido de R$ 625.865.685,00,
seguida do pagamento de indenizações por sinistros ocorridos no importe
de R$ 825.791.123,00 por parte das sociedades seguradoras, sendo
calculada uma elevadíssima sinistralidade de 152%[2]:

Ou seja, os números acima mencionados, cuja
divulgação foi feita pela autoridade reguladora brasileira do mercado
securitário, comprovam que o mercado securitário em 2019 mais pagou
indenizações do que recebeu prêmios em contrapartida para a assunção dos
riscos.
À título comparativo, em 2018 foi captado prêmio
emitido estimado em R$ 455.908.164 e pagas indenizações por sinistros
ocorridos no âmbito do seguro D&O no valor de R$ 358.856.364,00, sendo
estimada uma sinistralidade de 85%[3],
valor alto, contudo, em nada comparável com a sinistralidade verificada
posteriormente em 2019, lembrando que utilizamos dados de 2019 pois qualquer
dado de 2020 restará prejudicado por conta da pandemia.
Ultrapassada a seara comercial, outro ponto
que merece destaque no que concerne ao seguro D&O é a maturidade e coesão
legal observada em recentes decisões dos tribunais colegiados pátrios acerca do
contrato de seguro em discussão.
No âmbito do julgamento da apelação cível nº 1011986-32.2017.8.26.0100[4] em 14/08/2018, não obstante tratar-se de ação de instituição de arbitragem, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo discorreu acerca de importantes conceitos relacionados ao seguro D&O.
Neste sentido,
pontuou-se a impossibilidade de concessão de indenização securitária para
eventos relacionados a condutas tipificadas no Código Penal, conforme se extrai
do voto do Des. Cesar Ciampolini:
Naturalmente,
não se segura o administrador quando demandado em razão de ato doloso,
tipificado no Código Penal. Aliás, o art. 762 do Código Civil preceitua a
nulidade do “contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do
beneficiário, ou de representante de um ou de outro.” A cobertura securitária
não pode abarcar crime tipificado no Código Penal. Isto não é matéria regida
pelo Direito das Obrigações.
Ainda com relação ao julgado em questão,
assevera-se que eventual absolvição do administrador na esfera penal não o
exime do cumprimento de suas obrigações relacionadas ao contrato de seguro ou
anula vício verificado no momento de sua contração em razão da imprecisão das
informações prestadas à seguradora para a aceitação do risco.
Vale rememorar que o seguro D&O é um seguro a
conta de outrem, no qual são segurados, via de regra[5],
os administradores e/ou empregados da empresa contratante, (tomador), com
comprovados poderes de gestão.
Por seu
turno, a declaração de risco é uma das obrigações fundamentais do contratante,
cujo objetivo é permitir ao segurador formar sua opinião sobre o risco a
garantir, motivo pelo qual eventual vício em sua prestação macula o contrato
como um todo, trazendo prejuízos para o tomador e aos segurados.
Ademais,
no contexto da discussão, possui relevância a apelação
cível nº 1071762-31.2015.8.26.0100[6],
examinada pela 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de
São Paulo no dia 27/11/2018.
Depreende-se da análise de tal julgamento que a corte manteve
a negativa de indenização securitária, aplicando ao tomador do seguro D&O
os efeitos gerados pela omissão de fatos conhecidos e potencialmente danosos no
momento da celebração do contrato, em obediência ao previsto no art. 766 do
Código Civil:
Em que pesem as alegações
da parte autora, a recusa no pagamento de indenização pela seguradora ocorreu
de forma válida, pois antes mesmo
da apólice entrar em vigor, já tramitava o Inquérito Civil que apurava as
irregularidades em contrato administrativo (...).
Outrossim,
merece destaque o julgamento da apelação cível nº 1072790-29.2018.8.26.0100[7],
apreciada pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo
em 07/11/2019, na qual julgou-se improcedente o pedido indenizatório formulado
por tomador em face de companhia seguradora devido à constatação de omissões de
fatos que ensejaram o sinistro no momento da contratação e renovação do seguro
D&O.
Ainda
no contexto do julgamento de referida apelação, mister se faz analisar o voto
proferido pelo Des. Ênio Zuliani, estudioso do tema e muito provavelmente o
julgador brasileiro que mais entende do Seguro D&O, o qual foi no sentido
da inaplicabilidade da cobertura prevista no contrato de seguro para atos
ilícitos praticados por administradores:
O
seguro D&O é celebrado para que a sociedade e os próprios administradores tenham facilidade de defesa pelos riscos
provenientes de atos de gestão, o que é normal em mercado agitado e marcado
pelo risco de decisões equivocadas ou que dão errado pela instabilidade
financeira. Não é celebrado para bancar a defesa de quem corrompe fiscais e
agentes públicos para benefício próprio, data vênia.
No
julgado, discorreu-se que a existência de procedimentos administrativos
conduzidos por agências reguladoras constitui fato relevante passível de ser
informado à seguradora no momento da contratação do seguro D&O, sendo que
eventual omissão do tomador afeta seus diretores e administradores:
Por
tal razão, a existência do aludido processo administrativo deveria ter sido
informado à seguradora quando da renovação da apólice, fins de que a mesma
pudesse analisar corretamente a aceitação da proposta ou proceder na avaliação
do risco e consequente cálculo do prêmio.
(...)
Outrossim, é irrelevante o fato de a omissão de
informações ter partido da empresa tomadora, na medida em que é ela quem contrata
o seguro e efetua o pagamento dos prêmios. (g.n.)
Depreende-se da análise de tais decisões um
alinhamento com o entendimento doutrinário de que o proponente deve fornecer
ao segurador as informações caracterizadoras desse risco, de modo a permitir-lhe
estimar a probabilidade de verificação do evento extracontratual a que se
reporta o contrato[9].
Ainda, segundo apresentado na jurisprudência
ora examinada, identifica-se que ao apreciar administrativamente o sinistro
comunicado, a seguradora não se sub-roga na função de juiz togado, ou seja, não
analisa se houve, ou não, dolo no ato praticado pelo segurado, mas sim
limita-se à examinar a ocorrência de omissões ou imprecisões no ato do
preenchimento do questionário de risco.
Além disso, a defesa do posicionamento da
impossibilidade de concessão de indenização securitária para tomadores e/ou
segurados, os quais adotaram conduta viciada pela má-fé, contribui para a
preservação do princípio da mutualidade, imprescindível para a
manutenção da funcionalidade do contrato de seguro.
Tal elemento, essencial ao contrato,
configura-se de forma prática na coletividade de partes contratantes do seguro,
os quais são solidariamente submetidos aos mesmos riscos, contribuindo
individualmente com o pagamento do prêmio e coletivamente com os recursos para
a concessão de indenizações, desse modo, para o equilíbrio da relação entre os
segurados e segurador.
Assim, nos ensinamentos de Pedro Alvim, o
mutualismo constitui, portanto, a base do seguro. Sem a cooperação de uma
coletividade seria impossível, ou melhor, não se distinguiria do jogo[10].
Isto posto, frente à relevância do mutualismo
para o bom funcionamento dos contratos de seguro, dentre os quais destacamos o
seguro D&O, mostra-se imperioso afastar a tutela da cobertura securitária
aos segurados ou tomadores que agem em dissonância com a boa-fé para preservar
o fundo comum constituído pelos demais segurados, posicionamento compartilhado pelo Superior
Tribunal de Justiça – STJ:
Por isso, a má-fé ou a
fraude são penalizadas severamente no contrato de seguro. Com efeito, a fraude,
que é o contrário da boa-fé, inviabiliza o
seguro justamente porque altera a relação de proporcionalidade que deve existir
entre o risco e a mutualidade, rompendo, assim, o equilíbrio econômico do
contrato, em prejuízo dos demais segurados[11].
Portanto, extrai-se do exposto de que não há
uma tendência ativista por parte do Poder Judiciário ou mesmo tentativa de desvirtuar
o objeto do seguro D&O, mas sim a estrita observância do regramento
jurídico brasileiro, com destaque para os arts. 765 e 766, ambos do Código
Civil[12],
e dos princípios norteadores do direito securitário.
Por fim, conclui-se que tal rigor na
interpretação dos litígios securitários é benéfico para as partes contratantes
do seguro D&O, visto que permite o equilíbrio econômico contratual e
consequente do crescimento do contrato de seguro, como revelado nos dados da
SUSEP, ferramenta importante para a mitigação de riscos enfrentados por
tomadores e segurados.
[1] RAMOS, Maria Elisabete. O Seguro de
Responsabilidade Civil dos Administradores – Entre a Exposição ao risco e a
Delimitação da Cobertura. 2010, p. 339.
[2] Fonte:
Sistema de Estatísticas da SUSEP (disponível em: http://www2.susep.gov.br/menuestatistica/SES/principal.aspx).
[4] TJSP;
Apelação Cível 1011986-32.2017.8.26.0100; Relator (a): Hamid Bdine;
Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível
- 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento:
01/08/2018; Data de Registro: 14/08/2018.
[5] Salienta-se que na Cobertura C, Cobertura para
Mercado de Capitais, a contratante do seguro (tomadora) equipara-se aos
administradores também figurando como segurada.
[6] TJSP; Apelação Cível
1071762-31.2015.8.26.0100; Relator (a): Marcia Dalla Déa Barone; Órgão
Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 6ª Vara
Cível; Data do Julgamento: 27/11/2018; Data de Registro: 27/11/2018).
[7] TJSP; Apelação Cível
1072790-29.2018.8.26.0100; Relator (a): Marcia Dalla Déa Barone; Órgão
Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 31ª Vara
Cível; Data do Julgamento: 07/11/2019; Data de Registro: 18/11/2019.
[8] Apelação Cível, Nº 70083602862, Quinta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge André Pereira Gailhard, Julgado em:
27-05-2020.
[9] POÇAS, Luis. O Dever de Declaração Inicial do Risco
no Contrato de Seguro. Editora Almedina, Coimbra, 2013, p.109.
[10]
ALVIM,
Pedro. O contrato de seguro. 3. ed. Rio de janeiro: Forense, 2001, p. 59.
[11] REsp
1419731/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO
VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 09/09/2014
[12] Art. 765. O segurado e o segurador
são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita
boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e
declarações a ele concernentes.
Art. 766. Se o segurado, por si
ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias
que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o
direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido